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Uma foto da residência literária ‘A Room of One’s Own’

 

Na maioria das vezes, são os escritores, músicos, poetas, artistas e contadores de histórias que acompanham de perto o ritmo de suas comunidades. No Nepal, certamente há histórias com personagens LGBTIQ+, mas como elas tendem a ser contadas por escritores que não são LGBTIQ+, esses personagens são frequentemente apresentados como caricaturas ao invés de seres humanos complexos e realistas. As histórias que descrevem experiências genuínas são muito necessárias porque permitem que a comunidade em geral entenda que as pessoas LGBTIQ+ não são estereótipos unidimensionais – são pessoas reais.  

 Tendo isso em mente, a equipe da campanha Livres & Iguais da ONU no Nepal organizou uma residência literária chamada “A Room of One’s Own” – em português “Um Teto Todo Seu”, para sete promissores escritores LGBTIQ+, cuidadosamente selecionados entre mais de 70 candidaturas recebidas de 33 distritos do Nepal. Essa residência transformadora de 10 dias ofereceu uma experiência imersiva de escrita criativa, abrangendo workshops sobre pré-escrita, redação, revisão, edição e publicação. Notavelmente, a residência de escrita criativa serviu como o evento de estreia da campanha Livres & Iguais no Nepal, uma iniciativa liderada pelo Escritório do Coordenador Residente da ONU em colaboração com o Open Institute for Social Science e as organizações LGBTIQ+ KalaKulo, Kaalo.101, Srijanalaya, Nritya Aangan e The Drawing Room. 

  As seis pessoas selecionadas se reuniram com muito entusiasmo em Katmandu, ansiosas não apenas para aprimorar suas habilidades de escrita, mas também para estabelecer conexões significativas entre si. Entre eles estava Achyut, um jovem escritor gay apaixonado, que aproveitou a oportunidade de explorar o potencial transformador da palavra escrita para gerar mudanças positivas ao seu redor. 

 Refletindo sobre sua decisão de se candidatar, Achyut compartilhou: “Quando descobri que a residência era especificamente voltada para escritores LGBTIQ+ emergentes, não pude resistir e prontamente enviei minha candidatura. Com base em minha experiência pessoal, eu me assumi para meu irmão através de uma mensagem de texto muito sincera. Se tivesse sido uma conversa cara-a-cara, duvido que eu tivesse tido coragem e a situação poderia ter piorado. Eu estava tão nervoso. A escrita tem um poder único, já que perdura indefinidamente. Um texto bem elaborado tem a capacidade de inspirar uma profunda introspecção, alimentando conversas significativas que geram mudanças positivas.” 

 

Achyut, participante da residência literária ‘A Room of One’s Own’

 

Igualmente animada para participar da residência estava Ashika, uma jovem mulher trans motivada pelo desejo de presenciar uma maior representação LGBTIQ+ na literatura nepalesa. 

 “Desde a infância, e até hoje, sinto a escassez de personagens LGBTIQ+ na literatura nepalesa. Essa falta de representação me fez perceber que muitas de nossas experiências permanecem ocultas.” 

 Kusum, uma jovem lésbica com deficiência auditiva, que escreve desde a infância, viu a residência como uma oportunidade de não apenas aprimorar suas habilidades, mas também de se conectar com outras pessoas jovens LGBTIQ+ em um ambiente que abraça a diversidade. 

 Essa foi a única residência de escrita que eu soube ser dedicada exclusivamente à comunidade LGBTIQ+. Isso serviu como uma forte motivação para que eu enviasse minha candidatura.” 

 

Pessoas LGBTIQ+ no Nepal 

 

O Nepal é considerado um dos países mais progressistas da Ásia quando se trata de igualdade LGBTIQ+. A Constituição nepalesa oferece uma ampla proteção contra a discriminação para pessoas LGBTIQ+. Notavelmente, a decisão histórica da Suprema Corte em 2007, que revogou as leis discriminatórias com base na orientação sexual e na identidade de gênero, representa um triunfo significativo para a comunidade LGBTIQ+ nepalesa, que defendeu incansavelmente os direitos iguais junto ao governo. A decisão enfatizou o reconhecimento da identidade de gênero com base na autodeterminação e levou à criação de um comitê encarregado de explorar a possibilidade de casamento igualitário. 

 Apesar desses avanços significativos, ainda há uma lacuna notável na conscientização pública sobre os desafios enfrentados pelas pessoas LGBTIQ+ no Nepal. Na melhor das hipóteses, a compreensão do público é limitada, enquanto na pior, é altamente desinformada. O preconceito contra pessoas LGBTIQ+ impacta os membros da comunidade em todas as esferas de suas vidas; em casa com a família, à procura de emprego ou de um lugar para morar, na escola e em ambientes de saúde. Lamentavelmente, as vozes da comunidade LGBTIQ+ e de seus aliados são frequentemente marginalizadas, e suas perspectivas raramente são ouvidas. Consequentemente, um dos principais objetivos da ONU Livres & Iguais do Nepal é combater o estigma e desafiar os estereótipos, ampliando as vozes e as narrativas das pessoas LGBTIQ+ por meio de sua escrita.  

 Quando perguntados sobre suas visões de mudanças positivas em um futuro próximo, os participantes expressaram seus pensamentos com grande entusiasmo. Achyut enfatizou a importância da educação pública em relação às questões LGBTIQ+ como prioridade máxima: 

 “Para alcançar as mudanças positivas que imaginamos, é crucial que tanto as pessoas LGBTIQ+ quanto seus aliados ergam suas vozes em apoio à igualdade e à inclusão. Encontramos inúmeros desafios, como a discriminação e a violência, que precisam ser enfrentados em nosso caminho para o futuro. Mesmo assim, acredito firmemente em uma sociedade que acabará superando esses obstáculos.” 

 A igualdade de proteções legais para pessoas LGBTIQ+, inclusive para casais do mesmo sexo, foi destacada por Kusum. A discriminação no local de trabalho, especialmente de pessoas trans, dificulta a independência financeira, acrescentou ela. Mas para alcançar a igualdade é preciso educação e defesa de direitos.  

 “O tratamento igualitário e justo para todos é o que eu imagino que aconteça no futuro e campanhas como Livres & Iguais da ONU desempenham um papel vital na conscientização, na educação do público e na promoção da igualdade LGBTIQ+.” 

 De acordo com Ashika, é essencial destacar a representação LGBTIQ+ no currículo educacional nepalês para promover um melhor entendimento entre o público em geral. O simples fato de ter proteções constitucionais é insuficiente se sua implementação não for adequada. Ashika apontou a exigência angustiante de que pessoas trans forneçam “prova” de sua identidade de gênero para obter reconhecimento legal e expressou sua esperança na implementação efetiva dos direitos garantidos pela Constituição: 

 “Isso é humilhante e doloroso. Meu desejo sincero é que os direitos garantidos pela Constituição sejam implementados efetivamente em breve.” 

 

Construindo a comunidade por meio da criatividade 

 

Achyut, Ashika e Kusum vivenciaram momentos emocionantes durante a residência, decorrentes de sua nova conexão entre si. 

 Devido à sua deficiência auditiva, Kusum estava preocupada com a possibilidade de não conseguir participar integralmente dos workshops. 

 “Devido à minha deficiência auditiva, fiquei apreensiva com a possibilidade de ser selecionada, apesar de ter enviado minha candidatura. Os eventos anteriores dos quais participei eram muitas vezes inacessíveis para mim, pois eu não conseguia ouvir direito, então nunca me senti capaz de participar plenamente. No entanto, a experiência nessa residência foi extremamente diferente. No primeiro dia, quando os organizadores souberam de minhas dificuldades auditivas, eles rapidamente me forneceram um dispositivo Bluetooth conectado a um viva-voz. Eu pude ouvir tudo na hora! Lágrimas brotaram em meus olhos quando senti que finalmente conseguia ter acesso à tecnologia que me ajudava a ouvir. Daquele momento em diante, minha vida mudou. Agora carrego o dispositivo comigo para onde quer que eu vá e não me sinto mais deixada para trás.  

 Achyut também descobriu um senso de comunidade durante os workshops: “Foi a minha primeira experiência em me assumir publicamente como um homem gay. Logo no primeiro dia, criamos um vínculo e tive a sensação de estar em casa com todo mundo. Compartilhamos os nossos sentimentos abertamente, o que nos aproximou ainda mais. Percebi que não estou sozinho e que as pessoas LGBTIQ+ existem em todos os lugares do mundo; Só precisamos ser reconhecidos.”  

 

Ashika, participante da residência literária ‘A Room of One’s Own’

Em conjunto, o grupo produziu uma revista com 23 peças originais. Ashika aprecia o resultado, dizendo, “Sou sinceramente grata por cada parte dos workshops. O destaque foi, sem dúvida, a publicação “Zine” que conseguimos criar. Em apenas 10 dias, desenvolvemos uma revista completa com 23 histórias cativantes! Mantenho minha cópia na biblioteca do meu escritório e meu coração se enche de orgulho quando as pessoas vêm e elogiam meus dois artigos.” 

O ‘Zine’ representa as experiências coletivas dos escritores durante a residência, apresentando uma mistura impactante de poemas, cartas, textos pessoais, histórias e sonhos.

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